terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Falta de Memória


Há fenómenos difíceis de entender e de explicar, até por que, normalmente, tem plúrimas causas e podem ser evidencias de diferentes realidades.

Um desses fenómenos é a falta de memória, na sua vertente de memória selectiva.

Um exemplo:

Imagine-se que um cidadão, presidente da direcção de uma associação, em período de eleições autárquicas, decide fazer parte de uma lista partidária, a uma junta de freguesia. O mesmo cidadão decide, ainda, manter-se nas suas funções institucionais, durante a campanha eleitoral. E, felizmente, para o concelho, o partido politico, pelo qual aquele cidadão se candidatou tem o pior resultado de sempre, perdendo as eleições para o Município e para a Freguesia.

Vida difícil para aquele cidadão e aquela associação, perante os vencedores!

Volvidos quatro anos, o mesmo cidadão, ainda presidente da direcção da mesma associação, decide não integrar qualquer lista partidária, nem fazer campanha ou apoiar, explicitamente, qualquer força politica. Mas, em plena campanha eleitoral, promove, em conjunto com a direcção a que preside, um evento, com interesse para a associação, para o qual convida o Presidente de Câmara, ele sim candidato de novo. Nesse evento, bem ou mal, o Presidente de Câmara, decide ser a figura central do evento e o seu discurso é uma apologia ao voto, nele próprio e no seu partido. Azar dos Távoras, finda a noite eleitoral, o partido, pelo qual o cidadão se candidatou, quatro anos antes, vence as eleições. E o Presidente recandidato é derrotado.

Resultado: Os vencedores, escolhem esquecer-se que, no passado, aquele cidadão, deu o corpo às balas, pelo seu partido e optam por o criticar, por ter permitido ao adversário decidir fazer politica, num evento para o qual foi convidado por ser Presidente de Câmara.

De novo, vida difícil para o cidadão e para a associação!

O exemplo é, naturalmente, uma ficção, cuja semelhança com a realidade é produto de uma coincidência. Mas permite-nos verificar que a memória selectiva de alguns, aliada a um real azar, na escolha dos nossos comportamentos, leva dificuldades que podiam e deviam ser evitados.

Mas espelha também uma realidade muito própria do ser humano: a escolha de sentimentos que fazemos no nosso percurso quotidiano.

Os vencedores podiam conduzir-se por sentimentos de magnanimidade, de respeito pela opinião diversa e pela gratidão, para com quem, no passado, esteve com eles em tempos muito difíceis.

Mas não!

Escolhem a mesquinhez, a tacanhez, a ingratidão, a soberba. E, acima de tudo, escolhem confundir a nuvem com Juno, prejudicando o todo, pela conduta de uma sua parte.

Como diria o Secretário Geral das Nações Unidas, é a vida.

Carlos Bianchi

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Da presunção da inocência à certeza na culpa


Comecemos pelo que, parecendo óbvio, há muito anda esquecido, pelas terras lusas. Ninguém é culpado, apenas, por aparências. Ninguém deve ser considerado culpado, sem que tenha sido julgado. Posição, demagogicamente, declarada, como, politicamente, correcta, a minha. Sê-lo-á! Mas, às malvas, as opiniões dos paladinos da justiça popular.

O arguido ganha, no direito português, essa condição, quando,  contra ele, corra um processo, em que se verifique a existência de indícios sérios que fundamentem uma suspeita de que praticou um crime.

Repare-se que a lei fala em meros indícios , ainda que depois exija que sejam sérios. Todos os supostos paladinos da Justiça, sustentam o seu discurso, na expressão sérios. Com isso, pretendem dizer que, se não houvesse essa exigência – a da seriedade –, nunca viriam a terreiro, defender a crucificação pública de quem é arguido (muitas vezes, com a hipocrisia de quem diz “alegadamente”, “alegado” e batendo no peito, dizendo que observam a “presunção da inocência”).

Do que se esquecem é o que significa a palavra “indício” e confundem-na com a palavra “prova”. Ora, o indício é o «sinal definido pela relação de proximidade com aquilo que significa», ao passo que a prova «é aquilo que mostra ou confirma a verdade de um facto». Parecem coisa semelhante. Por vezes, é possível que um indício se torne prova. Mas na realidade, quer material, quer jurídica, não o é..

O indício, por muito sério que seja, apenas, é uma aparência de realidade. Dizendo de outro modo, se, num dado espaço, encontramos uma pegada de um sapato de homem, da medida 44, próxima do lugar onde se encontra um cadáver e temos um suspeito que calça o 44, aparentemente, este pode ser o autor do crime.

Mas será esse indicio, forte o suficiente, para servir de fundamento à nossa convicção de que aquele suspeito, cometeu aquele crime? Se partimos do principio de que quem investiga, no decorrer do seu trabalho, afastou todas as outras hipóteses, também elas lógicas, sim.  

Mas e se verificarmos que o investigador não afastou essas outras hipóteses? Claro que o indicio existe, mas não prova que quem cometeu o crime foi aquele suspeito em concreto. Pode gerar a suspeita, mas, em boa-fé, não é conclusivo.

O que faz então a investigação, nestes tempos mediáticos? Fácil. Viola o segredo de justiça, remete para a comunicação social a notícia de que o suspeito é fulano, diz que tem indícios suficientes (quase sempre sem indicar quais são ou quando o faz, fá-lo, truncadamente) e depois espera.

Espera a voragem dos acontecimentos, espera que o juízo da opinião pública gere a pressão sobre quem decide e então, procede como, na Roma Antiga. Lança os suspeitos aos leões e fá-lo perante um público, humano e imperfeito, isto é, sedento de sangue e de violência.

O possível passa a verdadeiro. As imperfeiçoes da investigação são olvidadas e tudo o resto passa a inverosímil, por não caber no preconceito.  Assim se faz do arguido, a quem vários direitos são atribuídos, na sua defesa, um indesculpável criminoso. De presumível inocente passa a, certamente, culpado. E nós aplaudimos acriticamente!

Carlos Bianchi