terça-feira, 15 de abril de 2014

Um conto lá do escritório (1)...

Levanto-me e olho a janela…
Chove…
Abro a porta do escritório e recebo o cliente, como se fosse um dia normal. Não imaginava os horrores, as felicidades, as emoções que me seriam transmitidas neste dia de Primavera, quente e eléctrica.
O homem chega, nervoso, tímido e pesaroso: “Senhor doutor dá-me licença?”
Respondo, com um sorriso: “Com certeza. Esteja à vontade. Desculpe a confusão da mesa, mas é normal com o volume de trabalho. Ora, diga lá…”
“Sabe” – responde o homem – “o que me traz aqui não é um problema bem meu. É mais com a minha mulher…”
“Então diga lá…” - falo intrigado com o início da conversa.
“Olhe senhor doutor, a minha mulher trabalha há mais de 15 anos numa loja de roupa, como vendedora. Conhecia pouco antes e já namorávamos… No início ela começou a trabalhar e as coisas eram difíceis… Havia poucas vendas… Não havia dinheiro em caixa… Os patrões contrataram com a minha mulher um salário, mas acordaram com ela que não o receberia todo. Davam-lhe algum fixo e o resto seria pago á comissão. Mas na folha de pagamento escreviam que pagavam o salário, que tinham contratado.”
“Estou a ver, estou a ver…” – afirmo eu, sem contudo perceber onde é que o homem queria chegar.
“Quando a minha Manuela nasceu… A minha filha mais velha nasceu há 12 anos e chama-se Manuela, sabe? Quando a Manuela nasceu, a minha mulher era a única vendedora da loja, os patrões deixavam tudo nas mãos dela e ela geria aquilo como se fosse dela” – diz-me o homem cheio de orgulho.
“Sim…” – assinto eu sem saber de que é que o homem estava a falar, mas deliciado com a candura do sentimento que ele transmitia.
“Pois bem… quando a Manuela nasceu, a minha mulher teve de ficar em casa uns quatro meses, por causa da bébé… Os patrões tinham de ter outra empregada e a minha mulher arranjou uma rapariga para fazer o lugar dela, ensinou-lhe o que tinha que fazer, mas quase todos os dias ia à loja para ajudar no que podia…” diz-me o homem desassombrado.
“Quando chegou a altura da minha mulher regressar, os patrões decidiram que precisavam das duas – da minha mulher e da raparigota. Tudo corria bem até há coisa de poucos meses. Desde então, que a minha mulher diz que as coisas mudaram. A raparigota decidiu dizer ao patrão que a minha mulher roubava a caixa, dava artigo aos familiares sem eles pagarem e falava mal dos patrões na rua. O patrão, que sempre pareceu nosso amigo, não sei bem porquê, em vez de falar com a minha mulher passou a falar mais com a raparigota e deixou de dar valor à outra funcionária.” – diz-me o homem condoído.
“A sério?” – questiono eu
Ó doutor, olhe que eu não digo mentiras. E a minha mulher era incapaz de fazer aquilo de que é acusada pela colega” – diz-me o homem todo indignado.
“Desculpe, amigo se o ofendi. Não era essa a minha intenção” - respondo apressadamente – “mas por favor continue…”
“Sabe, doutor, a minha mulher estranhou a atitude da raparigota, cada vez mais armada em patroa e do patrão. Não compreende porque haveria o patrão de acreditar, mais na colega, no que nela e por que motivo não confrontou as duas para saber a verdade. A minha mulher bem tenta ignorar a situação para ver se passava. Ficou pior!” – diz-me o homem quase a chorar.
“Tenha calma” – apresso-me eu a tentar confortar o homem – “Tenha calma. Afinal o que é pretende saber, em concreto?”
“O que eu quero saber, mesmo, senhor doutor, é: se eu rebentar de porrada a raparigota e der dois tiros no patrão, arrisco-me a ir preso?” – pergunta-me o homem, com os olhos cheios de fúria.
“Claro que sim, homem. Essa questão o senhor já sabia. Mas calma. Se as coisas estão assim dessa maneira, porque não experimenta falar primeiro com a rapariga e o patrão? Podia mandar-lhes uma carta e tentar mediar o assunto se me permitirem” – falo, tentando acalmar a raiva do homem.
“Ó doutor tem a certeza que isso vai resolver alguma coisa?” – questiona o homem.
Olhe, para ser sincero, não tenho a certeza, mas piorar, acho que não piora” – respondo, honestamente.
Decididos, o homem e eu tratamos, de tudo, para marcar as reuniões e tentar resolver as questões, de forma amigável.
O cliente saí…

Fico a pensar: e se tudo o que o homem narrou se passasse comigo e com a minha mulher?

(claro que o dia prosseguiu, mas isso são outras estórias)
NB: O conto é uma obra de ficção que deve ser lido como tal, mas qualquer semelhança com a realidade não é obra do acaso.


quinta-feira, 3 de abril de 2014

Quarenta Anos sobre o 25 de Abril – Uma reflexão inquietante

“…considerando o crescente clima de total afastamento dos Portugueses em relação às responsabilidades politicas que lhe cabem como cidadãos, em crescente desenvolvimento de uma tutela de que resulta constante apelo a deveres com paralela denegação de direitos;
considerando a necessidade de sanear as instituições, eliminando do nosso sistema de vida todas as ilegitimidades que o abuso do poder tem vindo a legalizar…”- in proclamação do Movimento das Forças Armadas, tornada publica às 11 horas da manhã do dia 25 de Abril de 1974.
Começo este meu texto citando algumas das razões que, segundo o Movimento das Forças Armadas, motivaram a realização da Operação Fim do Regime.
Quarenta anos depois, vivemos num estado democrático, onde liberdades como a de expressão, a de voto, a de participação popular nas decisões do poder estão consagradas.
Mas será que aqueles considerandos não se repetem hoje?
Veja-se:
1º - Os Portugueses continuam afastados das responsabilidades políticas (e não) que lhes advêm da sua qualidade de cidadãos.
Provam-no as crescentes abstenções, os crescentes apelos ao voto em branco e nuloo total afastamento dos momentos em que podem e devem participar nos órgãos autárquicos… Dizem alguns, que tal se deve à qualidade dos políticos actuais. Poderia até ser verdade, mas  e o decréscimo do movimento associativo, a fraca adesão às assembleias gerais das associações e às assembleias de compartes também se devem à qualidade dos políticos?
Será que todos estes dados não são expressão apenas uma propensão para o conformismo?

2º - As tutelas continuam a apelar constantemente aos deveres, negando aos cidadãos os seus direitos.
Seja em nome da crise económica, seja em nome de um passa culpas constantes, os diversos responsáveis políticos continuam a insistir no apelo ao dever patriótico de pagar as dividas publicas, de suportar o gasto de dinheiro sem critério e/ou objectividade, de aguentar com as consequências de uma ineficiência dos sistemas de obras publicas, etc.
No entanto, os mesmo responsáveis são quem, na sua pratica, nos negam o direito á Justiça mais próxima, o direito à aplicação de uma politica de emprego capaz de fixar as pessoas no nosso concelho, o direito á implementação de uma politica local de transportes mais eficientes, etc…

3º - Continuam por sanear as instituições as praticas que o abuso do poder legitima, mesmo que legais.
De facto, quem não conhece casos evidentes de favorecimento familiar, de favorecimento de amigos e de pagamento de favores, que, sendo totalmente legais, só provam a colocação dos interesses pessoais à frente dos interesses colectivos?
Quem não conhece altos responsáveis que, tendo beneficiado de tais favorecimentos, no passado, não contestam hoje casos semelhantes, por mero oportunismo?

Concluindo, feita a Revolução dos Cravos, por homens como Salgueiro Maia, desassombradamente, em nome e em favor do Povo, a verdade é que os vícios do antigamente, continuaram nesta nossa democracia.
Seja porque nós, cidadãos, continuamos, impávidos e serenos a assistir de camarate ás mesmas coisas, sem nos movermos. Seja porque continuamos a acreditar que nada se pode fazer para mudar o que está mal e se nos mexermos apenas podemos ser prejudicados.

Assim e sem mais, quer-me parecer que falta, pelo menos nestas questões, cumprir Abril.

E que tal reflectir sobre isto?
Carlos Bianchi