Levanto-me e olho a janela…
Chove…
Abro a porta do escritório e recebo o cliente, como se fosse
um dia normal. Não imaginava os horrores, as felicidades, as emoções que me
seriam transmitidas neste dia de Primavera, quente e eléctrica.
O homem chega, nervoso, tímido e pesaroso: “Senhor doutor
dá-me licença?”
Respondo, com um sorriso: “Com certeza. Esteja à vontade. Desculpe
a confusão da mesa, mas é normal com o volume de trabalho. Ora, diga lá…”
“Sabe” – responde o homem – “o que me traz aqui não é um
problema bem meu. É mais com a minha mulher…”
“Então diga lá…” - falo intrigado com o início da conversa.
“Olhe senhor doutor, a minha mulher trabalha há mais de 15
anos numa loja de roupa, como vendedora. Conhecia pouco antes e já namorávamos…
No início ela começou a trabalhar e as coisas eram difíceis… Havia poucas
vendas… Não havia dinheiro em caixa… Os patrões contrataram com a minha mulher
um salário, mas acordaram com ela que não o receberia todo. Davam-lhe algum
fixo e o resto seria pago á comissão. Mas na folha de pagamento escreviam que
pagavam o salário, que tinham contratado.”
“Estou a ver, estou a ver…” – afirmo eu, sem contudo
perceber onde é que o homem queria chegar.
“Quando a minha Manuela nasceu… A minha filha mais velha
nasceu há 12 anos e chama-se Manuela, sabe? Quando a Manuela nasceu, a minha
mulher era a única vendedora da loja, os patrões deixavam tudo nas mãos dela e
ela geria aquilo como se fosse dela” – diz-me o homem cheio de orgulho.
“Sim…” – assinto eu sem saber de que é que o homem estava a
falar, mas deliciado com a candura do sentimento que ele transmitia.
“Pois bem… quando a Manuela nasceu, a minha mulher teve de
ficar em casa uns quatro meses, por causa da bébé… Os patrões tinham de ter
outra empregada e a minha mulher arranjou uma rapariga para fazer o lugar dela,
ensinou-lhe o que tinha que fazer, mas quase todos os dias ia à loja para
ajudar no que podia…” diz-me o homem desassombrado.
“Quando chegou a altura da minha mulher regressar, os patrões
decidiram que precisavam das duas – da minha mulher e da raparigota. Tudo corria
bem até há coisa de poucos meses. Desde então, que a minha mulher diz que as
coisas mudaram. A raparigota decidiu dizer ao patrão que a minha mulher roubava
a caixa, dava artigo aos familiares sem eles pagarem e falava mal dos patrões na
rua. O patrão, que sempre pareceu nosso amigo, não sei bem porquê, em vez de
falar com a minha mulher passou a falar mais com a raparigota e deixou de dar
valor à outra funcionária.” – diz-me o homem condoído.
“A sério?” – questiono eu
“Ó doutor, olhe que eu não digo mentiras. E a minha mulher
era incapaz de fazer aquilo de que é acusada pela colega” – diz-me o homem todo
indignado.
“Desculpe, amigo se o ofendi. Não era essa a minha intenção”
- respondo apressadamente – “mas por favor continue…”
“Sabe, doutor, a minha mulher estranhou a atitude da
raparigota, cada vez mais armada em patroa e do patrão. Não compreende porque
haveria o patrão de acreditar, mais na colega, no que nela e por que motivo não
confrontou as duas para saber a verdade. A minha mulher bem tenta ignorar a
situação para ver se passava. Ficou pior!” – diz-me o homem quase a chorar.
“Tenha calma” – apresso-me eu a tentar confortar o homem – “Tenha
calma. Afinal o que é pretende saber, em concreto?”
“O que eu quero saber, mesmo, senhor doutor, é: se eu
rebentar de porrada a raparigota e der dois tiros no patrão, arrisco-me a ir
preso?” – pergunta-me o homem, com os olhos cheios de fúria.
“Claro que sim, homem. Essa questão o senhor já sabia. Mas calma.
Se as coisas estão assim dessa maneira, porque não experimenta falar primeiro
com a rapariga e o patrão? Podia mandar-lhes uma carta e tentar mediar o
assunto se me permitirem” – falo, tentando acalmar a raiva do homem.
“Ó doutor tem a certeza que isso vai resolver alguma coisa?”
– questiona o homem.
“Olhe, para ser sincero, não tenho a certeza, mas piorar,
acho que não piora” – respondo, honestamente.
Decididos, o homem e eu tratamos, de tudo, para marcar as reuniões
e tentar resolver as questões, de forma amigável.
O cliente saí…
Fico a pensar: e se tudo o que o homem narrou se passasse
comigo e com a minha mulher?
(claro que o dia prosseguiu, mas isso são outras estórias)
NB: O conto é uma obra de ficção que deve ser lido como tal, mas qualquer semelhança com a realidade não é obra do acaso.
NB: O conto é uma obra de ficção que deve ser lido como tal, mas qualquer semelhança com a realidade não é obra do acaso.